quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Eu sou a Coisa, coisamente.


EU ETIQUETA

Carlos Drummond de Andrade


Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.

7 comentários:

ღ mey ♥¨`*•.¸¸.•*´¨♥ღ disse...

eu adoro o carlos! tenho um livro dele que simplesmente não consigo parar de ler.

Anônimo disse...

Adoro esse poema. Faz pensar no quanto o ser humano se coisifica e se defende assumindo papel de coisa.
Tem um livro bom q fala sobre isso entre tantas outras coisas: A Era do Vazio, do Gilles Lipovetzky.

Bjus
Anna O.
Divã Rosa Choque

Fabi disse...

A primeira vez q li esse texto eu tinha 14 anos, metade da idade que tenho hoje , e ele continua tão atual

Camila :) disse...

legaal
num curto muito carlos :)
mas esse poema é boom demaais auhahuahua


bejoo

Darshany L. disse...

drummond é rei

bia de barros disse...

Ele foi Pioneiro em muitas Coisas, falando de seu tempo coisamente.

Drummond, Eternally.
*;

"Acho que eu fico mesmo diferente
Quando falo tudo o que penso realmene"
[Pato Fu]

Lua disse...

AMEIII
DEMAIS
ARRASOUU